A MITIGAÇÃO DA IMPENHORABILIDADE NAS EXECUÇÕES: A CONTROVÉRSIA QUANTO À PENHORA PARCIAL DAS VERBAS SALARIAS

A MITIGAÇÃO DA IMPENHORABILIDADE NAS EXECUÇÕES: A CONTROVÉRSIA QUANTO À PENHORA PARCIAL DAS VERBAS SALARIAS

                                                                                                                                               Nacayra Da Cunha Peixoto Rodrigues

As impenhorabilidades são limites legais previstos no Código de Processo Civil, impostos ao procedimento de execução, objetivando sopesar o direito do credor com o do devedor. Embora a questão seja normativamente delineada, fixam-se controvérsias nos âmbitos doutrinário e jurisprudencial quanto à mitigação de uma das impenhorabilidades: as verbas de natureza salarial.

Para contextualizar, o procedimento de execução possui como objeto o cumprimento da obrigação não cumprida espontaneamente.

No ditame legal processualista, são versadas diversas espécies de execução. Dentre elas, no art. 824 do CPC, está a execução por quantia certa, que intenta obrigar o cumprimento de prestação pecuniária.

Em se tratando de dívida não adimplida voluntariamente, são implementados meios para buscar a satisfação forçada do crédito. O primeiro instrumento utilizado para tanto e, primordial, é a penhora. A principal função desse mecanismo se funda em “determinar o bem sobre o qual se realizará a expropriação e fixar sua sujeição à ação executiva”[1].

Percebe-se, então, que esse se trata do primeiro passo rumo à expropriação do bem na prática. Segundo Humberto Theodoro Júnior, a penhora tem natureza de ato executivo, e visa, em primeiro lugar, individualizar e apreender os bens que serão destinados à satisfação da execução.

Caso a legislação processualista se restringisse a essas disposições sobre a penhora, o devedor estaria desamparado, já que todos os bens de sua propriedade poderiam ser retirados do seu domínio para satisfazer a execução.

Diante disso, e em observância aos princípios constitucionais da Dignidade Humana e a Tutela do Salário, o Código de Processo Civil fixou bens que estão fora do alcance da penhora – em tese.

Neste sentido, dispõe o art. 833 do CPC, que lista um rol de bens que não estarão sujeitos ao instrumento da penhora.

Assim, em que pese a impossibilidade do devedor em resistir à expropriação dos seus bens para sanar a dívida, a impenhorabilidade legal delimita bens do executado que tem uma proteção frente à execução. Daniel Amorim Assumpção Neves explica que:

é o patrimônio do responsável patrimonial – que nem sempre é o devedor – que responde pelas dívidas, mas nem todos os bens que compõem o seu patrimônio podem ser utilizados para a satisfação do direito do exequente. (AMORIM, 2018).[2]

É nítida, portanto, a correlação da previsão da legislação processualista com a Constituição Federal, haja vista a indubitável preocupação do legislador em criar freios à procura ilimitada da satisfação do credor, salvaguardando a dignidade humana do executado e os meios para a sua sobrevivência.

Cumpre ressaltar que, o art. 833, §2º, do CPC, tão somente prevê a relativização da penhora em duas hipóteses: no que diz respeito às verbas de natureza salarial e àquelas depositadas em caderneta de poupança, para pagamento de prestação alimentícia e às importâncias excedentes a 50 (cinqüenta) salários-mínimos mensais.

Sendo assim, imagina-se que não haveria que se falar em mitigação da regra da impenhorabilidade para além da previsão legal. No entanto, não é o que acontece na prática.

Especificamente no que diz respeito à impenhorabilidade das verbas de natureza salarial, sabe-se que essas são aptas a manter a subsistência do executado, de modo que justificativa para a impenhorabilidade prevista no dispositivo legal ora comentado reside justamente na natureza alimentar de tais verbas, donde a penhora e a futura expropriação significariam uma indevida invasão em direitos mínimos da dignidade do executado, interferindo diretamente em sua manutenção, no que tange às necessidades mínimas de habitação, transporte, alimentação, vestuário, educação, saúde, etc.

Afere-se a legítima e reiterada preocupação da legislação pátria em abordar sobre a impenhorabilidade dos salários lato sensu, para que o executado seja capaz de prover o mínimo para sua existência.

Contudo, para além da relativização da regra já prevista na legislação processualista, alguns doutrinadores entendem que é possível avançar ainda mais e mitigar essa regra da impenhorabilidade, se, no caso concreto o valor recebido a título de verba alimentar (salário, rendimento de profissional liberal, etc.) exceder consideravelmente o que se impõe para a proteção.

Isso quer dizer que, ainda que a verba recebida não ultrapasse o limite legal de 50 (cinqüenta) salários-mínimos mensais, caso o valor seja maior que a proteção imposta para necessidades voltadas a subsistência, é possível a penhora do salário e verbas similares.

Interpreta-se o artigo do Código de Processo Civil de forma extensiva, pelo viés de que tornaria o procedimento de execução dificultoso caso se aplicasse a restrição de toda verba salarial ou sua possibilidade apenas às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, considerando se tratar de situação esporádica de elevada condição financeira do executado, discrepante da realidade da maior parte da população brasileira.

Diante disso, os doutrinadores sustentam a possibilidade de penhora de parte dos valores salariais, desde que não interfira na manutenção básica do executado – o que, para eles, pode ocorrer em valores muito inferiores ao limite estabelecido pelo CPC.

Os autores pontuam, ainda, que a aplicação da regra conforme a literalidade do art. 833, IV, pode ser caracterizado como aplicação inconstitucional do instituto, por prestigiar tão somente o direito fundamental do executado, em detrimento do direito fundamental do exequente.

Com base nessa linha de pensamento, o Judiciário passou a proferir decisões divergentes sobre o tópico, com diferentes aplicações do mesmo dispositivo legal para casos semelhantes, gerando insegurança jurídica sobre o tema.

A dissidência doutrinária/legislativa sobre a problemática se exterioriza aos casos concretos, já que hodiernamente existem decisões quanto à impenhorabilidade de verbas salariais em ambos sentidos.

Essa divergência se configura desde Código de Processo Civil de 1973[3]. À época de vigência deste Codex, o art. 649, IV, era prevista a impenhorabilidade absoluta das verbas salariais, impedindo a relativização dessa regra em qualquer hipótese que não se tratasse de crédito exequendo de natureza não alimentar.

Por essa razão e após inúmeras tentativas não sucedidas de modificações legislativas que objetivam a adequação à realidade executiva no Brasil, muitos processualistas passaram a defender uma interpretação mitigada do artigo[4].

A situação era corriqueira e, por isso, estava presente no cotidiano do judiciário brasileiro, tornando imperioso o posicionamento do STJ quanto ao dispositivo em estudo.

Todavia, até mesmo as turmas que compunham o Superior Tribunal de Justiça se posicionavam de forma diferente a cada caso que era analisado.

Quando acionada, a Segunda Turma se posicionou no sentido de que a penhora das verbas previstas no art. 649, IV do CPC/73 ocorreria unicamente em conjunturas que envolvessem créditos de natureza alimentar. A Terceira Turma, por sua vez, deliberou em conformidade com a interpretação extensiva da regra, possibilitando a penhora em casos de empréstimos consignados e em hipóteses em que restasse comprovado que o executado não teria prejuízo à sua dignidade, tampouco à de sua família.

Perante a divergência de entendimento entre as Turmas, foram julgados Embargos de Divergência n. 1.582.475/MG[5], este fixado consonância ao posicionamento da Terceira Turma, ponderando o tratamento isonômico entre exequente e executado.

Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, algumas alterações foram feitas. Dentre elas, o art. 833, IV, que tem o mesmo intuito do obsoleto art. 649, IV do CPC/73, passou a dispor relativizações quanto à impenhorabilidade de verbas salariais.

Em vista da problemática estabelecida, o legislador vislumbrou como suficientes as mitigações por ele apontadas nos parágrafos do art. 833, IV, do CPC/15, para sanar os questionamentos quanto à essa espécie de impenhorabilidade.

Todavia, os autores e integrantes do judiciário persistiram com o entendimento de que as relativizações legais adicionadas se mostraram insuficientes para lograr êxito na satisfação do crédito do exequente.

Isso porque uma das hipóteses se refere a não aplicação da impenhorabilidade das verbas salariais em casos de crédito de natureza alimentar – conjuntura que não se materializa na maioria das ações e que já existia no código anterior.

A segunda hipótese se trata da possibilidade de penhora nos casos em que a remuneração do executado a ser penhorada seja excedente a 50 (cinquenta) salários-mínimos. Entretanto, a hipótese r. citada se prova incoerente com a realidade brasileira, considerando a excepcionalidade de pessoas que auferem tamanho montante.

Vê-se, no entendimento doutrinário, que o executado pode se sustentar com valores inferiores ao limite legal estabelecido, o que permitiria a penhora de uma parcela da verba salarial sem prejuízo do princípio da dignidade humana.

Inclusive, esse é o viés do jurista Daniel Amorim Assumpção Neves, ao dizer que “pode-se criticar o valor indicado pelo art. 833, §2º, do Novo CPC, afinal, são poucos devedores que recebem valor superior a 50 (cinquenta) salários-mínimos por mês.”[6]

O judiciário, então, voltou a assumir uma interpretação extensiva da norma, aplicando a impenhorabilidade mesmo em casos de natureza não alimentar e que não fossem excedentes ao limite legal.

Veja-se alguns exemplos, primordialmente retirados do Egrégio Tribunal de Minas Gerais:

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO MONITÓRIA – PENHORA – APOSENTADORIA – POSSIBILIDADE – LIMITE MÁXIMO DE 30% DO VALOR LÍQUIDO – PREVIDÊNCIA PRIVADA COMPLEMENTAR – APLICAÇÃO FINANCEIRA – IMPENHORABILIDADE ATÉ 40 SALÁRIOS MÍNIMOS.
1. “A regra geral da impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. (art. 649, IV, do CPC/73; art. 833, IV, do CPC/2015), pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família” (EREsp 1582475/MG, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 03/10/2018, DJe 16/10/2018).
2. Em atenção aos princípios da proporcionalidade e da efetividade, a impenhorabilidade do salário não pode ser utilizada de maneira distorcida, sob pena de burlar as obrigações e, assim, gerar a inadimplência. De outro ponto, é evidente que a penhora não deve recair na totalidade do salário recebido, devendo ser observado o limite de 30% da sua renda líquida, haja vista o caráter alimentar de tais proventos.
3. Em se tratando de valores percebidos de previdência privada complementar, que constitui aplicação financeira de longo prazo, incide a impenhorabilidade prevista no inciso X, do art. 833, do CPC, haja vista que a sua interpretação extensiva tem o objetivo de proteger a reserva financeira do devedor, até o limite de 40 salários mínimos, conforme entendimento do STJ.
(V.V.P.) São absolutamente impenhoráveis – no todo ou em parte – os valores provenientes de aposentadoria, diante de seu caráter alimentar, não excedentes a 50 (cinquenta) salários mínimos mensais, salvo se a penhora se destinar ao pagamento de prestação alimentícia, com base no art. 833, IV c/c § 2º, do CPC.  (TJMG – Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.21.265431-3/001, Relator(a): Des.(a) Leonardo de Faria Beraldo, 9ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 18/10/2022, publicação da súmula em 20/10/2022).

O mesmo posicionamento foi explicitado pelo STJ em decisões recentes, se tornando a aplicação como via de regra para casos similares:

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AGRAVO INTERNO. PENHORA. LOCAÇÃO DE IMÓVEL. PERCENTUAL. RENDIMENTOS. IMPENHORABILIDADE RELATIVA (CPC/2015, ART. 833, IV). RETORNO DOS AUTOS. AGRAVO IMPROVIDO.

  1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, “Em situações excepcionais, admite-se a relativização da regra de impenhorabilidade das verbas salariais prevista no art. 649, IV, do CPC/73, a fim de alcançar parte da remuneração do devedor para a satisfação do crédito não alimentar, preservando-se o suficiente para garantir a sua subsistência digna e a de sua família” (EREsp 1.518.169/DF, Rel. p/ acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, CORTE ESPECIAL, j. em 03/10/2018, DJe de 27/02/2019).
  2. A Corte de origem afastou a pretensão recursal quanto ao pleito de penhora de 30% do salário do ora recorrido, unicamente por entender pela impenhorabilidade absoluta do rendimento salarial.
  3. Estando o acórdão estadual em dissonância com a jurisprudência deste Tribunal, impõe-se o retorno dos autos à Corte de origem a fim de que reexamine a causa à luz do entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
  4. Agravo interno desprovido.

(AgInt no REsp n. 1.934.570/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 10/10/2022, DJe de 21/10/2022.)

A interpretação extensiva, no entanto, ainda não é pacífica, mesmo com o posicionamento do STJ. Isso se justifica em razão da ausência de vinculação do Tribunal Superior sobre o tema e, apesar de se tratar de um direcionamento em virtude de questões hierárquicas do Poder Judiciário, não obriga que os tribunais o sigam à risca.

A contrário senso do entendimento de relativização, ao pesquisar sobre o tópico, aparecem julgados em que os magistrados aplicam a impenhorabilidade absoluta às verbas de natureza salarial, como se colhe a seguir:

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA – PENHORA – APOSENTADORIA – IMPOSSIBILIDADE – NATUREZA ALIMENTAR – IMPENHORABILIDADE ABSOLUTA – ART. 833, INCISO IV, DO novo CPC (LEI 13.105/15). Os proventos oriundos de aposentadoria recebidos pelo agravante revestem-se de natureza alimentar, sendo reconhecida sua impenhorabilidade absoluta (art. 833, inciso IV, do novo CPC, da lei 13.105/15).


EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL – JUSTIÇA GRATUITA – REQUISITOS PRESENTES – NULIDADE – AUSÊNCIA – IMPENHORABILIDADE DE PROVENTOS DE APOSENTADORIA – EXCEDENTE – POSSIBILIDADE DE PENHORA. A declaração de hipossuficiência possui presunção de veracidade derivada da declaração de hipossuficiência econômica concedida à pessoa física. O comparecimento espontâneo supre a nulidade da citação. Os proventos de aposentadoria correspondem a bem amparado pela impenhorabilidade absoluta, salvo as duas exceções legalmente previstas demonstradas no art. 833, §2º do CPC/15, bem como o limite de cinquenta salários mínimos.

As ementas supracitadas referem-se tão somente a exemplos a título de demonstração, mas não são exceções. Atualmente, encontram-se sentenças e acórdãos em ambos os sentidos abordados quase na mesma proporção, a variar unicamente pelo entendimento do juiz ou desembargador a cargo do juízo. Percebe-se, então, a nítida insegurança jurídica que se estabelece frente às impenhorabilidades de verbas de natureza salarial.

Os sujeitos jurídicos que são partes em execuções que envolvam a penhora de verbas salariais não saberão o que esperar como resultado da lide em que estão envolvidos, já que a pauta está inteiramente à disposição da discricionariedade da interpretação que o magistrado sorteado para o julgamento faz do art. 833, IV.

Pelas razões expostas, o tribunal mineiro busca solucionar, em um futuro próximo, as questões em aberto sobre a impenhorabilidade de verbas de natureza salarial.

Para tanto, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais admitiu, em 17/11/2021, o IRDR n. 1.0182.16.001439-1/001. O incidente submeteu a julgamento a seguinte questão: “Definir a possibilidade de penhora de salário, relativizando o art. 833 do CPC”. Esse é o Tema 79 IRDR – TJMG, que possui como relatora a Excelentíssima Desembargadora Juliana Campos Horta.

O procedimento, em que pese não possuir desfecho, decerto se prova como fator que poderá amparar futuras decisões do tribunal mineiro, possibilitando, finalmente, a unificação das interpretações sobre tema de tamanha controvérsia – ainda que em sede regional, considerando o caráter vinculante do Incidente de Resolução de Demandas Repetitiva.

 

REFERÊNCIAS:

[1] ASSIS, Araken de. Manual de Execução. 2016. Disponível em: https://doceru.com/doc/x11vvn1. Acesso em: 12 set. 2022.

[2]AMORIM, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. 2.ed., 2018. Disponível em: https://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliotecas:livro:2018;001114256. Acesso em: 15 set. 2022.

[3] BRASIL. Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869impressao.htm. Acesso em: 20 set. 2022.

[4] REDONDO, Bruno Garcia. Penhora da remuneração do executado: relativização da regra da impenhorabilidade independentemente da natureza do crédito. Revista Brasileira de Direito Processual. n. 70. p. 188. Belo Horizonte: Fórum, abr.jun. 2010.

[5] STJ. Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 1.582.475/MG. Relator: Ministro Benedito Gonçalves. DJ, 16/10/2018. JusBrasil, 2019. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/638033351/inteiro-teor-638033394. Acesso em: 23 out. 2019.

[6] AMORIM, Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado artigo por artigo. 2. ed., p.1353.