ESCOLHA DO LEILOEIRO: PRERROGATIVA LEGAL DO EXEQUENTE

ESCOLHA DO LEILOEIRO: PRERROGATIVA LEGAL DO EXEQUENTE

                                                                                                                                                                                           Lucas Tavares Mourão

Encerrada a fase cognitiva de um processo judicial, as partes se deparam com novo obstáculo: a execução para garantia da satisfação do direito.

Dentre os instrumentos previstos no Código de Processo Civil para assegurar a pretensão do credor, há a alienação de bens do devedor, quando penhorados nos autos. Criou-se uma celeuma jurisprudencial, contudo, quanto às hipóteses em que o exequente poderia indicar leiloeiro de sua escolha, em detrimento de profissional sorteado dentre os auxiliares do juízo. A questão, embora normativamente bem delineada, enfrentou resistência por parte de alguns magistrados, tendo que se buscar pacificação nas orientações prestadas pelo Conselho Nacional de Justiça.

Dando início às disposições processuais sobre a alienação, o art. 879 do CPC estabelece que a alienação do bem penhorado nos autos da Execução por Quantia Certa pode ser realizada por iniciativa particular ou em leilão judicial eletrônico ou presencial, a ser realizado por corretor ou leiloeiro público. Segue-se o art. 880, que em seu caput regulamenta o rito da alienação, do qual se extraem as duas possibilidades conferidas ao exequente: alienação por iniciativa própria, ou por leiloeiro/corretor credenciado.

Atenta-se a que o caput não traz quaisquer disposições acerca da forma de escolha do leiloeiro, propriamente dita. Já o § 4º, por sua vez, determina que, se não houver leiloeiro credenciado na localidade, o exequente poderá indicar de livre escolha o profissional para conduzir o leilão.

Não é, contudo, uma hipótese exclusiva ou restritiva de quando o exequente pode se valer dessa prerrogativa. O § 4º disciplina, tão somente, o procedimento a ser adotado nas situações em que NÃO houver leiloeiro credenciado, nada dispondo acerca de quando, efetivamente, haja profissional credenciado.

De forma que, para a regra geral – quando HÁ leiloeiro credenciado – o art. 880 não disciplina sobre a forma de designação do profissional, se por indicação do exequente ou se por sorteio. A redação do art. 880, em especial o § 4º, se limita a elucidar o procedimento a ser adotado quando NÃO HÁ leiloeiro credenciado na localidade.

Para as situações em que HÁ leiloeiro público credenciado na localidade, o Código de Processo Civil deixou expresso no art. 883 que o juiz irá designar o profissional a partir da indicação do exequente (“Caberá ao juiz a designação do leiloeiro público, que poderá ser indicado pelo exequente”).

Reforçando o mandamento do art. 883, o Conselho Nacional de Justiça regulamentou a alienação judicial por meio eletrônico e editou a Resolução nº 236/2016, que traz em seu art. 9º o seguinte teor:

Art. 9º Os leiloeiros públicos credenciados poderão ser indicados pelo exequente, cuja designação deverá ser realizada pelo juiz, na forma do art. 883, ou por sorteio na ausência de indicação, inclusive na modalidade eletrônica, conforme regras objetivas a serem estabelecidas pelos tribunais.

A Resolução do CNJ, regulamentando e reiterando o dispositivo processual, deixa claro que o exequente pode indicar o leiloeiro público credenciado, cabendo ao juiz designá-lo. Apenas na ausência de indicação pelo exequente é que a escolha do profissional será feita por sorteio.

A questão se desdobra, portanto, tão somente a partir do fato de haver, ou não, leiloeiro público credenciado na localidade. A depender da resposta, a escolha do leiloeiro seguirá as soluções apontadas no fluxograma esboçado abaixo, para melhor visualização das hipóteses:

A leitura das normas aponta a primazia em se entender a indicação pelo exequente como regra. Assim é exposto pelos mais respeitados doutrinadores pátrios, como se retira de seus ensinamentos:

Cabe ao juiz designar o leiloeiro público (art. 883, CPC). Nessa indicação, deve o juiz observar a distribuição alternada e equitativa das funções entre os leiloeiros públicos, caso haja mais de um, aplicando-se, por analogia, a regra já existente para a perícia (art. 157, § 2º, CPC). O exequente pode indicar o leiloeiro público (art. 883, parte final, CPC) – essa indicação tem preferência, caso contrário o dispositivo seria inútil. A indicação feita pelo exequente deve recair sobre profissionais que estão legalmente habilitados a exercer essa função. Se não houver leiloeiro público na comarca, o leilão pode ser conduzido, a critério do juiz, por outro serventuário da justiça – ainda na hipótese de não haver leiloeiro público na comarca, o exequente pode indicar profissional que possa cumprir essa função. É sempre possível, ainda, escolha consensual do leiloeiro feita pelo exequente juntamente com o executado (art. 190, CPC).

O STJ tem o posicionamento, firmado ao tempo do CPC-1973 (art. 706, CPC-1973), de que o juiz poderá recusar a indicação do leiloeiro público feita pelo exequente, desde que o faça de forma motivada. Mas não é qualquer justificação que autoriza a recusa: é preciso identificar a existência de fraude à lei ou simulação na indicação feita pelo exequente (art. 142, CPC).[1]

 

Não efetivada a expropriação do bem penhorado por adjudicação ou alienação por inciativa particular, será realizado o leilão judicial, que terá início com a indicação, pelo exequente, do leiloeiro público de sua preferência, dentre aqueles credenciados pelo tribunal.

O leiloeiro público, tal qual o perito, embora não seja serventuário da justiça, atua como auxiliar do juízo e “exerce no leilão judicial missão do Estado, e nessa qualidade cumpre suas funções”.

Assim como ocorria no Código revogado, compete ao exequente indicar o leiloeiro, que será em regra designado pelo juiz. O juiz pode, contudo, recusar a indicação apresentada pelo exequente e designar outro leiloeiro, desde que apresente, em decisão devidamente fundamentada, motivo relevante para a recusa (art. 883 do NCPC e art. 706 do CPC/1973).[2]

Como apontam os autores, a indicação pelo exequente só pode ser rejeitada se devidamente fundamentada pelo magistrado nos casos em que se constate fraude ou simulação na indicação.

Malgrado a clareza nas disposições processuais sobre o procedimento de alienação, reforçadas pela redação do art. 9ª da Resolução CNJ nº 236/2016, a livre nomeação de leiloeiro pelos exequentes esbarrou em entendimentos contrários por parte de magistrados que interpretaram as normas sob o entendimento equivocado de que a ÚNICA possibilidade de o exequente indicar leiloeiro seria quando não houvesse um profissional credenciado na localidade, ancorando-se no art. 880, § 4º, CPC.

Decerto, a leitura conduzida não se revela a mais correta, pois confere interpretação restritiva ao art. 880, § 4º, do CPC e torna o art. 883 inócuo, causando uma antinomia entre os dispositivos do Código de Processo Civil.

Como discorrido, o art. 883 dispõe que o juiz designará o leiloeiro público, que poderá ser indicado pelo exequente. Se, conforme leitura operada por alguns magistrados, este artigo estiver condicionado ao art. 880, § 4º, ele será mera tautologia.

Afinal, o art. 880, § 4º já determina a possibilidade de o exequente indicar leiloeiro nas situações em que não haja leiloeiro credenciado na localidade. Caso prospere a interpretação de que o art. 883 também só confere essa prerrogativa ao exequente quando não houver leiloeiro credenciado na localidade estará, tão somente, repetindo o quanto determinado pelo art. 880, § 4º, tornando inócuo de sentido a existência do art. 883. Essa hipótese não pode prosperar no ordenamento jurídico pátrio.

Convém lembrar, dentre os princípios básicos da hermenêutica jurídica, o aforismo proveniente do Direito Romano, de que “não se presumem na lei palavras inúteis” (Verba cum effectu, sunt accipienda). Contudo, com a interpretação ora criticada, o art. 883 torna-se inútil na legislação, contrariando a mens legis, voltada à prevalência do interesse do exequente em lograr maiores chances de arrematação.

A interpretação equivocada sobre os dispositivos do Código Processual resulta, para além da antinomia, em frontal desrespeito ao ato normativo exarado pelo Conselho Nacional de Justiça em sua Resolução nº 236/16, em especial quanto ao art. 9º, que prioriza a indicação de leiloeiro pelo Exequente.

Não se descura a possibilidade de o magistrado rejeitar a indicação de leiloeiro, mas desde que haja fundamentos para tanto. Do contrário, deve-se seguir a indicação feita pelo Exequente. Assim aponta Humberto Theodoro Júnior, no trecho supra transcrito.

Para pacificar a questão e consolidar o entendimento sobre a prerrogativa do exequente para indicar leiloeiro, a matéria foi submetida à apreciação do Conselho Nacional de Justiça, em Procedimento de Controle Administrativo. De forma unânime, o CNJ confirmou o que aqui se defende. Transcreve-se o acórdão de lavra da Conselheira Candice Lavocat Galvão Jobim:

RECURSO ADMINISTRATIVO. PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. CONTRADITÓRIO. PRESERVAÇÃO. SISTEMA AJ. DESIGNAÇÃO DE LEILOEIROS. PRERROGATIVA DO MAGISTRADO. INDICAÇÃO DA PARTE. AUSÊNCIA DE VEDAÇÃO. ART. 883 DO CPC E RESOLUÇÃO CNJ 236/2016. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

1.Recurso contra decisão que julgou improcedente pedido para declarar nulidade de dispositivo de ato do Tribunal que estabelece procedimentos para designação de leiloeiros.

2.Inexiste ofensa ao contraditório quando a tese apresentada pela parte é examinada e refutada por meio de argumentos jurídicos. Não se pode confundir o desacolhimento da pretensão com o cerceamento de defesa, pois o julgamento contrário aos interesses não constitui ofensa ao contraditório.

3.Os dispositivos do Ofício Circular 19/COASA/2020 orientam os magistrados mineiros no uso do Sistema Eletrônico Auxiliares da Justiça (Sistema AJ) para nomeação de leiloeiros e corretores judiciais e não se sobrepõem às questões tratadas pela Resolução CNJ 236/2016 ou pela lei processual civil. O ato impugnado na inicial não impede a parte de indicar o leiloeiro ou determina que sorteio eletrônico seja a única forma de escolha do auxiliar da Justiça. Não há falar em contrariedade ao art. 9º, caput, da Resolução CNJ 236/2016 e art. 883 do Código de Processo Civil.

4.O magistrado não está compelido a aceitar a escolha do leiloeiro indicado pela parte. O art. 883 do Código de Processo Civil não deixa dúvidas quanto à faculdade na designação do auxiliar da Justiça escolhido pelo particular.

5.Este Conselho não tem competência censurar decisões judiciais, no entanto, deve ser assentado que é franqueado à parte indicar o leiloeiro público cadastrado no Sistema AJ da CGJMG, nos termos do art. 883 do Código de Processo Civil.  Ao magistrado é reservado o encargo de examinar o pedido formulado pelo particular e, de forma fundamentada, acolher ou não a indicação do auxiliar da Justiça, independentemente de a indicação ter ou não seguido a forma equitativa entre os profissionais regularmente cadastrados, ou o sorteio eletrônico.

6.Recurso parcialmente provido.

(CNJ – RA – Recurso Administrativo em PCA – Procedimento de Controle Administrativo – 0009485-53.2020.2.00.0000 – Rel. CANDICE LAVOCAT GALVÃO JOBIM – 89ª Sessão Virtual – julgado em 25/06/2021).

A decisão põe uma pá de cal na divergência que remanescia. Não sobram mais dúvidas acerca da possibilidade e da primazia conferida ao exequente em indicar leiloeiro, quando de seu interesse. Contudo, ainda pode o magistrado rejeitar a escolha apontada, desde que fundamente sua decisão, como pontuado pelo CNJ.

Embora não abordado no acórdão lavrado, entende-se mais adequada a interpretação conferida por Didier Jr. et. al. (supra) de que são razões para justificar a rejeição do profissional indicado a existência de fraude à lei ou a simulação na indicação feita, em consonância com o art. 142 do CPC. Situações de má-fé, em que se percebe que o credor usa do processo e de sua prerrogativa para fins ilícitos. Afora essas hipóteses, quer dizer, em não havendo vícios na indicação do profissional apontado pelo exequente, não subsistiriam motivos para o juiz indeferir a escolha feita e impor o sorteio dentre os auxiliares do juízo cadastrados junto ao tribunal.

Em conclusão, é seguro dizer que consoante doutrina mais abalizada e a mais recente orientação do Conselho Nacional de Justiça, a leitura que os tribunais devem lançar sobre os arts. 879 e seguintes do CPC é aquela que, segundo a mens legis, assegura a autonomia do credor para escolher leiloeiro de confiança, caso vislumbre seja essa a medida mais eficaz para satisfação da execução.

 

REFERÊNCIAS: 

[1] DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. V. 5., 7. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 925.

[2] THEODORO JÚNIOR, Humberto; OLIVEIRA, Fernanda Alvim Ribeiro de; REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras lições sobre o Novo Direito Processual Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 633.